Elisaldo Carlini: uma visão da filha Célia Carlini
A pesquisadora do InsCer e professora da PUCRS, Célia Carlini, escreveu um relato pessoal cheio de boas lembranças para a Academia Brasileira de Ciências sobre o recém falecido companheiro de Academia, pai dela, Elisaldo Carlini.
“Meu pai era um homem complexo e multifacetado. Nada com ele era linear. Mas como a filha primogênita, sinto que conheci facetas dele que outros, mesmo os meus irmãos, desconhecem.
Foi ele que acordou meu lado cientista. Eu tinha 5 anos quando ele me presentou com uma taturana, acomodada dentro de um frasco de vidro. Ele me ensinou a cuidar da lagarta, que só podia ser alimentada com um tipo específico de folhas, que eu tinha que colher no jardim todos os dias. Vi a lagarta crescer, trocando de pele de vez em quando, e um dia, para minha enorme surpresa, não achei a taturana dentro do frasco, e sim, uma crisálida (pupa).
Naquele dia, esperei aflita meu pai voltar do trabalho para me explicar o que tinha acontecido com minha taturana. Ele me disse que o “mistério” ainda não tinha terminado, e me instruiu a manter a crisálida no escuro, e observá-la todos os dias.
Quando a borboleta finalmente emergiu da crisálida, eu, completamente fascinada, já havia me tornado uma cientista.
Nessa fase de criança, vivi com ele outras experiências com a natureza, que foram determinantes para desenvolver uma cumplicidade que era só nossa. Como as que vivemos no litoral paulista, nas férias na Praia Grande ou Itanhaém, caçando siri na praia. Para pegar esses crustáceos, ele tinha uma técnica especial. Tinha que ser ao entardecer. Após uma onda, quando a água do mar retornava e antes da areia aparecer, os siris formavam “montinhos” escondidos sob a água que corria. Esse era o momento em que ele se colocava atrás dos animais, impedindo que voltassem para o mar, jogava-os na areia, longe da água. Eu era só sorrisos, chegando na casa da praia após a caçada, com um balde cheio de siris, que depois de cozidos, eram saboreados por todos nós.
Outra vez, também nessas praias, vimos um fenômeno raro, uma maré de plâncton bioluminescente, que fazia as ondas, ao quebrarem, emitirem uma luz verde azulada.
Pura magia, que observamos juntos, com as gargantas embargadas de emoção.
Em 1967, eu me mudei com minha mãe e irmãos para Ribeirão Preto. Ainda que a convivência diária com ele tivesse sido interrompida, a forte ligação que nós tínhamos não estremeceu. Talvez até tenha sido reforçada por este afastamento forçado.
Ele nos visitava em Ribeirão Preto periodicamente, mas eram as férias escolares que eu esperava com ansiedade, quando eu e meus irmãos, Beatriz e Álvaro, viajávamos para São Paulo para ficar algumas semanas com ele. Foi nessa época, eu com onze anos, que ele me iniciou na vida de laboratório.
Eu ia com ele para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, onde ele era professor então. Ele me ensinou a segurar ratos e camundongos, e comecei a participar do treinamento dos animais em várias tarefas, como andar por um labirinto ou subir uma corda para ganhar comida. Depois de bem treinados, os animais eram usados para avaliar os efeitos do delta 9- tetrahidrocanabinol e de outros princípios ativos da Cannabis sativa.
Aprendi a injetar os animais e também ajudei em diversos outros experimentos para avaliar efeitos da maconha, como a caixa de Skinner, agressividade e outros comportamentos sociais, coordenação motora, etc.
Aos dezesseis anos, minha participação nesses experimentos renderam um agradecimento por ajuda técnica em um artigo científico do grupo. Nessa época, eu já não questionava minha vocação profissional. Eu queria ser cientista.
Em 1972, voltei para São Paulo para morar com meu pai. Dessa segunda fase de convívio diário com meu pai ficaram duas marcas permanentes em mim, resultados de ensinamentos dele. Ele me apresentou a música lírica, a ópera, os réquiens, missas e oratórios, que ambos ouvíamos em êxtase, até ir às lágrimas. Como bom descendente de italianos, aprendi com ele a saborear um bom vinho tinto, a única bebida alcoólica que ambos de fato apreciávamos.
Em 1975, chegara o momento de me preparar para o vestibular, e decidir qual carreira queria seguir. Outra vez, meu pai me ajudou a decidir não fazer medicina, já que o que eu queria era fazer pesquisa (ele era médico, mas nunca exerceu a medicina). Ingressei no curso de Ciências Biológicas – Modalidade Médica, da então Escola Paulista de Medicina (EPM).
Mas não foi fácil ser aluna, na EPM, sendo filha do Carlini, ele que já havia criado e chefiava o Departamento de Psicobiologia. Minhas notas eram excelentes, mas alguns dos meus colegas olhavam com desconfiança, achando que a correção das minhas provas tinha sido “facilitada”. E eu, todavia, comparando a correção das minhas provas com a dos colegas, achava o contrário, que tinha sido exigido mais conhecimentos de mim do que dos outros.
Isso me incomodava e logo decidi que, apesar de me fascinar a psicobiologia, não conduziria minha carreira como cientista na “sombra” do meu pai. Ele me entendeu perfeitamente, e muito me incentivou a descobrir qual a área de conhecimento que eu queria seguir na pós-graduação, e então, eu optei por Bioquímica.
Meu pai era um professor fantástico, entusiasmado, com boa oratória, e ao mesmo tempo era acessível, e assim cativava os alunos. Aliás, ele tinha o dom de encantar e fascinar qualquer tipo de plateia, como eu testemunhei inúmeras vezes. Fiquei muito feliz quando minha turma da EPM elegeu meu pai como nosso Patrono. Foi muito emocionante quando eu me formei, em 1978, ter recebido o meu diploma das suas mãos.
Em 1980, eu e Jorge mudamos para Niterói, e logo depois para o Rio de Janeiro, onde começara uma nova fase das nossas vidas. Morando longe, via meu pai com menos frequência, quando ele vinha nos visitar no RJ ou quando eu ia para SP. Eu era docente da UFRJ, e minha carreira começava a se afirmar.
Eu me lembro de um episódio, em meados de 80’s, de um dia ter recebido uma correspondência, em resposta a um pedido de separata, que era para ele. Comemorei a confusão dos Carlini(s), pois isso acontecia pela primeira vez depois dele ter recebido várias correspondências que eram para mim. Brincamos muito sobre esse episódio, ele dizendo que temia que EU faria “sombra” sobre a carreira dele.
Apesar de nunca termos publicado juntos, atuando como guest editor, eu o convidei a escrever uma revisão para um volume especial do periódico Toxicon em 2004, e um capítulo para o livro Plant Toxins (editora Springer) em 2015, ambos na temática de Cannabis e outras drogas psicoativas. Inúmeras e repetidas vezes ele me disse o quanto estava orgulhoso do meu sucesso profissional. Certamente não teria acontecido assim, sem o sempre presente incentivo e exemplo dele”.
Fotos: arquivo pessoal